Cristina Nobre Soares





Lembro-me pouco daquela vida. Lembro-me que era uma vida com uma varanda de ferro forjado e retorcido. Talvez pelo tempo. Lembro-me que a vizinha do primeiro esquerdo chegava sempre às seis e vinte. Era uma mulher de cabelo crespo e usava um casaco azul clarinho com cotoveleiras de bombazina a taparem o coçado. Lembramo-nos sempre de coisas que não interessam para podermos esquecer as que nos doem. Lembro-me que o candeeiro da rua acendia às sete menos dez. De Inverno. Porque de Verão não tinha hora certa. De Verão não é preciso. Lembro-me que as portadas verdes do meu quarto chiavam quando as fechava. Por isso deixava-as sempre entreabertas, para deixar entrar o fresco da noite, dizia. Lembro-me de pensar, um dia vou mandar pôr uns estores, daqueles que deixam entrar fiozinhos de luz da manhã pelos buracos de plástico. Lembro-me que o vizinho do rés-do-chão, que era reformado da marinha, me dizia, tem de ver daquelas portadas, com a ladroagem que para aí anda, todo o cuidado é pouco. Lembro-me do silêncio. De não estares. De não estares. E do silêncio. Lembro-me de esperar uma qualquer coisa que nunca me batia à porta. Também não importa. Já não moro lá. Arrendei uma outra vida, só com duas assoalhadas e estores eléctricos. Fica na periferia do que quis. A uma hora de carro do que fomos.

Texto : Cristina Nobre Soares
Foto : Estelle Valente

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