João Pedro Azul


 


Estás em casa. Ainda que o teu cheiro se tenha tornado ténue e este não seja o teu silêncio, estás em casa. Vejo-te a fazer a mala. Estou sentada na beira da cama. Não fizemos amor nessa noite, amor. Estava cansada. Inútil cansaço, sei-o agora. Tu estavas feliz. Ia ser bom para ti. Bom para a tua carreira. A tua posição na empresa. Eu também estava feliz, por ti, amor. Estás em casa. Afinal eram só dez dias. O tempo voa. Eu sei, eu sei. O teu abraço — a minha casa. A nossa.

O tempo é uma coisa estranha. Parece-me agora que toda esta cena demorou dias. Dias inteiros. Longos. Vejo as tuas camisas, uma por uma. Estás em casa. Estás. Tão perto de mim. Fui levar-te ao aeroporto. Não havia trânsito, nessa manhã. Curioso. Talvez fosse cedo. Foi cedo, sim, amor. Um cedo esmagador. Estás em casa, e eu estou a chegar. Não consigo habitar este vazio sozinha. É demasiado largo. E esta dor tão estreita. Perdoa-me. Não te zangues comigo. Mas não consigo sobreviver ao horror. Estás em casa, é aí o meu lugar. Junto a ti. Minha vida, meu amor. Só tenho pena da Mimi que não pára de miar ao ver-me aqui suspensa nesta corda. Mas ela há-de sobreviver. Estás em casa. Abre-me a porta, amor.

Texto :  João Pedro Azul
Foto : Estelle Valente

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Catarina Santiago Costa


Catarina Santiago Costa

 


Sebenta (cygnus)
#1 A poesia é oriunda da fronteira matizada entre o essente e o escrito. Conheces o cisne esbracejante perseguido pelo negro como se à morte devesse tempo? #2 Sou o cisne tennysoniano que esbraceja agónico na fronteira matizada entre o essente e o escrito. A morte segue-me de perto como se lhe devesse tempo.
Texto :  Catarina Santiago Costa 
Foto : Estelle Valente

Carla Diacov


Carla Diacov


The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex.

num açougue abandonado nasceu
uma só folha de cipreste entre um tijolo solto e 
um gancho oxidado
uma mulherzinha está ali
do outro lado do balcão arruinado
ela quer a mostra do porco
ela quer estampar o avental as luvas
ela quer a carne da cor da folha do tempo
quantos minutos de forno?
pergunta 
tirando raízes e folhas
dos olhos 
quanto de abandono pra cada porco quilo?

Texto :  Carla Diacov 
Foto : Estelle Valente

Nuno F. Santos Cash


Nuno F. Santos Cash

 
Sempre que me torno num Domingo murcho de alegria. A saudade pode ser isso. Estar numa salamandra de campo com neve e cães de casota, currais com coelhos às dezenas lá fora dos azulejos e... lembrar-me do calor com a sombra dos pratos de plástico a Sul. O Sul pode ser isso. Não uma geografia nem sequer os meus pais a educarem-me com piqueniques nos fins-de-semana, à mais mínima luz. No Sul, onde há mar ou onde há longe do mar, há a sesta e o sentido do nada para uma criança. A não ser que queira ser isso de ser mais alto do que os poetas ou do que a cesta que levas como se a Leonor levasse alguma no que cantava Camões. Só me ficam as oliveiras e uma sombra à sombra de ti. Q.B. para o primeiro esfreganço, quantidade eterna para querer cheirar cabelos molhados e sentir falta... falta mesmo da pele lisa dos meus pais e da falta de sensibilidade deles nessa altura – o hoje é só a memória - para com uma criança que por entre as árvores e os gritos dos grilos diurnos não consegue ser criança. Como brincar se não há bombas nem batalhas? Não há escorregas nem super poderes que aguentem um Sul destes com comida antes da hora na ausência de relógios de parede e televisões ligadas. A preto e branco.
A burguesia amolece. A boa burguesia também, quando levantar-te a saia e beijar-te as bocas todas do corpo é o que mais queria quando crescesse e é o que mais quero neste momento quando parar de crescer até ao fundo da terra. Que seja sob as oliveiras.
Não te vejo em qualquer chão, só no chão das azeitonas verdes pequeníssimas... que as outras árvores nem interesse me suscitam, porque lembrar-me de ti e da tua anca nua, lembrar-me de ti e das meninas nos teus olhos é ser amor em tesão e tesão todo no amor impossível. És tão diferente de tudo o que cresce e é centenário... e milenar, apenas milenar provavelmente, és então cabelo seguro, escorrido com a cesta por entre os piqueniques da minha família. A Gioconda da modernidade, a rapariga de pérola sem brinco e que fazia piqueniques sozinha.
Passaram milhões de segundos e escondo-me ainda de embaraço, mas guardo-te assim, sem mostrares uma ruga que seja. Por enquanto. É a beleza da eternidade. Não ficarmos iguais mas ficarmos sempre como imaginamos. Pode ser isso a eternidade. O meu sonho requere um prolongamento da memória. Também desejo esse dia de rugas. O dia em que possamos ser da mesma altura, e pode ser um Domingo... que eles fazem esse sentido de me deixar com a tua falta. E contente. E triste. No campo. A querer as oliveiras do Sul em ti. Pode ser isso a saudade. 

Texto :  Nuno F. Santos Cash
Foto : Estelle Valente

Gisela Casimiro


Gisela Casimiro


ALICERCE

À tua volta tudo em obras. É assim que sei qual de nós é o verdadeiro artista. Soubeste delegar para a cidade todos os fossos, a lama, os sinais, as barreiras e as campainhas de um alarme já não tão mudo. Tens escavadoras, guindastes e camiões à tua mercê. No meu exército só existo eu. A cidade não é mais do que a extensão do que te consumia tanto que não mais podias escondê-lo. A terra, revolta como o meu estômago, sempre que te vejo. Ou mesmo quando não te vejo. Pequenas instalações artísticas como templos para os teus fantasmas, mais do que para o teu Deus. 

Perigos vários. Protecções de plástico-cor-do-batom-preferido para andaimes enferrujados. Tábuas sem salvação possível. Nunca experimentei um capacete, sabes? Penso sempre que não me servem e, no entanto, arrisco mais do que todos os outros. Como agora, por exemplo. Sei bem que não faço parte das tuas preces e, no entanto, visitei uma igreja em reconstrução interior, no dia em que nos conhecemos. 

O cigarro no canto direito da boca luminosa, eu que não fumo, eu que caibo nas tuas roupas e que com elas me passeei por toda a parte, eu que murmurei o teu nome tantas vezes antes de dormir, como quem acredita, eu que continuo a coleccionar as fitas das minhas camisolas e vestidos sem saber se alguma vez as atarei aos teus cabelos. Eu aqui, sem botas, sem luvas, sem óculos. Eu, sem colete e sem licença, encaro-te. A noite é uma máscara que usamos à vez. 

Texto :  Gisela Casimiro
Foto : Estelle Valente

Ana Sofia Paiva


Ana Sofia Paiva

Breve

Ela volteia no lago do muro. 
É um cisne de asfalto. 
Ela assombra, é sombra glamorosa, adumbrada
na parede turmalina dos meus olhos,
espraiando o meu coração inteiro pela calçada 
em piruetas de carvão.

Ela ateia um circo de sonho na praça dos meus olhos,
sem plumas de Paris.
É no meu quarto que ela dança,
que ela avança,
que ela diz: 
“Breve.” 

Ela dança na rua, pelos becos da calma.
Ela dança luas de cinza no teatro da alma.
Ela salta, ela exalta à luz da ribalta, ela diz: 
“Breve!” 

Ela falta. 
Ela falta. 

Infinita vai a noite, e sossegadamente leve.

Leio as águas, leio o vento, 
leio em cada movimento de lentura 
o perfume de uma ausência. 

Voará. 
E eu, corpo dançado de tantas passagens, rio 
escorrendo na clepsidra de algum porto, resistirei.

Breve sou, breve sejas. 
Breve seja a dor até ao fim do mundo.


Texto : Ana Sofia Paiva
Foto : Estelle Valente

Sónia Oliveira


Sónia Oliveira

imersão

tu sabes que nunca hesitei em mergulhar sem suporte de vida, levar ao limite o fio de luz que ia libertando com um rigor de ourives, para emergir com as mãos cheias de esponjas e de corais vermelhos. descer a noventa pés e regressar. cinco minutos de apneia. sem outro peso que não o meu próprio peso e o peso de todas as respirações que por mim ficavam suspensas. sabes que o mar me amava, que me despia do corpo, que me recebia inteiro com a sua pele salgada e me conduzia, com o seu movimento, àquele outro mar que trago dentro de mim. que ainda trago. dentro.

eu sei que era o meu perfil que desenhavas na areia molhada, enquanto esperavas que eu regressasse, ainda um pouco inebriada com o iminente exaurir da luz. era por isso que ficava tanto tempo com a tua mão nas minhas. queria perceber como é que cada um dos meus riscos se fixara na ponta dos teus dedos, como é que o teu braço decorou o meu contorno, que movimento era esse que me arrancava de dentro de ti.


gosto de lavar a loiça com música. não importa o que se faça, tudo é melhor com música. gosto de lavar os pratos e os copos por onde havemos de comer e beber tantas vezes. sentir com o tacto se está tudo limpo, porque a luz é pouca. gosto de pouca luz em casa. de ter todos os sentidos concertados para me devolverem o mundo, me aplacarem o mar, me redesenharem a sombra. ao lado, na sala, vais esboçando o presente de um traço. desenhas olhos e asas, corais vermelhos abandonados na praia. acabaremos a noite numa só silhueta, fundidos com a casa, despidos de paredes, inteiros.

Texto : Sónia Oliveira
Foto : Estelle Valente

Cristina Nobre Soares


Cristina Nobre Soares




Lembro-me pouco daquela vida. Lembro-me que era uma vida com uma varanda de ferro forjado e retorcido. Talvez pelo tempo. Lembro-me que a vizinha do primeiro esquerdo chegava sempre às seis e vinte. Era uma mulher de cabelo crespo e usava um casaco azul clarinho com cotoveleiras de bombazina a taparem o coçado. Lembramo-nos sempre de coisas que não interessam para podermos esquecer as que nos doem. Lembro-me que o candeeiro da rua acendia às sete menos dez. De Inverno. Porque de Verão não tinha hora certa. De Verão não é preciso. Lembro-me que as portadas verdes do meu quarto chiavam quando as fechava. Por isso deixava-as sempre entreabertas, para deixar entrar o fresco da noite, dizia. Lembro-me de pensar, um dia vou mandar pôr uns estores, daqueles que deixam entrar fiozinhos de luz da manhã pelos buracos de plástico. Lembro-me que o vizinho do rés-do-chão, que era reformado da marinha, me dizia, tem de ver daquelas portadas, com a ladroagem que para aí anda, todo o cuidado é pouco. Lembro-me do silêncio. De não estares. De não estares. E do silêncio. Lembro-me de esperar uma qualquer coisa que nunca me batia à porta. Também não importa. Já não moro lá. Arrendei uma outra vida, só com duas assoalhadas e estores eléctricos. Fica na periferia do que quis. A uma hora de carro do que fomos.

Texto : Cristina Nobre Soares
Foto : Estelle Valente

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