Nuno Miguel Guedes



Era a grande noite da tempestade.
Talvez tenha sido o único a vê-lo, entre os brilhos baços das vidas ao abandono. Saiu da multidão como um náufrago é expulso pela maré que o lança na praia, o balcão uma ilha desejada. Desajeitado como todos os perdedores, acendeu um cigarro e quase sussurrou o pedido de uma cerveja.
Depois olhou em volta. Ao longe conseguia perceber-lhe no olhar o desespero manso de quem vê em todos os desconhecidos a solução das mais secretas angústias. Lembrei-me estupidamente de uma frase de um livro antigo que já não suporto: “No meio da multidão há sempre a esperança de um rosto”, aforismo desbotado e incómodo mas que com surpresa verifiquei ser verdadeiro. Por isso, quando os nossos olhares se cruzaram senti uma espécie de reencontro. Com passo lento dirigiu-se a mim e a sua voz baixa mas grave destacou-se inesperadamente do pandemónio musical que lhe servia de cenário:
«Dói, não dói?», perguntou.
«Como? Desculpe, eu...»
«Dói. Eu sei que dói. Aquele olhar. Aquele instante.»
«Desculpe, se calhar conhecemo-nos mas...» balbuciei, agora também eu à deriva.
«Claro que nos conhecemos. Às vezes. Hoje, sim», respondeu enigmaticamente enquanto acendia outro cigarro. «Dói, não dói?», repetiu.
Procurei em vão por sinais de embriaguez ou ausência de sanidade temporária, algo que me garantisse toda a conversa ser um equívoco. Mas o que conseguia retirar era apenas uma bizarra sensação de familiaridade, que crescia a cada minuto. Até que, de forma natural disse
«Dói. Dói muito, em proporção directa com o tempo que passa. Dói tanto que procuro o maior número de pessoas na esperança que a dor se dilua, se desfaça entre tantos rostos felizes. Dói.»
O desconhecido sorriu, num assentimento triste: «O que custou mais? As últimas palavras? O eco das vozes que se afastam? O último olhar?»
«O ruído da porta a fechar-se sobre o meu rosto. O ruído mais definitivo que alguma vez ouvirei.»
«Amava-a muito, eu sei»
«Muito. Mas como sabe?»
Sorriu outra vez enquanto regressava docemente para o balcão, com os olhos de um cúmplice antigo.
«Sei porque somos o mesmo. Não iguais: o mesmo.». E desapareceu para sempre entre olhares e decibéis.
Nunca mais o encontrei porque também nunca mais o perdi. Da grande tempestade recordo então a hora clara em que pela primeira vez me conheci.


Texto : Nuno Miguel Guedes
Foto : Estelle Valente

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