Teresa Lopes Vieira







A mãe das coisas

Escreve uma cena
disse ela
escreve um poema, um conto ou uma fábula.
Então eu resolvi falar um pouco sobre a tua vida, sabes, aquela das doze infâncias.

Quando ainda eras tão mais nua do que agora e te debruçavas nas árvores, corrias atrás dos patos. Lembro-me bem de como todos os animais de odiavam, por tu lhes infligires as maiores torturas. Alguns já eram mesmo capazes de detectar os teus passos ao longe, adiantando-se-lhes, fugindo. Ainda no tempo onde não te expunhas por aí, e poucos eram os que podiam dizer conhecer-te. Hoje, é difícil combater os que te pensam. São tantos.

Nessa altura, dizia-se que ao fundo daquele bosque havia a mãe das coisas. Ela gritava-nos a vida por entre o vento e depois nós decidíamos aceitar, se sim ou não, faríamos o que nos pedia. Lembro-me de que passávamos horas escutando o vento, à espera do seu próximo segredo. Graças a certas ordens, íamos crescendo mais um pouco. Mas era um crescimento brando e certo, uma evolução natural para jovens.
Certa vez, mandou-nos caçar meia-dúzia de perdizes. Mas nós nem o sabíamos fazer, por sermos novos demais. Mesmo assim, decidimos encher um saco de pedras e lá fomos, pelos caminhos ladeados de giestas e pinheiros. A verdade é que no fim do dia, tínhamos as ditas perdizes.
Foi graças a ela que te tornaste assim, não digas que não
(não digas nada)
de uma certa maneira, é a cada gesto e decisão tua que ela hoje se revela. As pessoas sabem que temos algo de diferente, sabem, só não conseguem dizer o quê.

Até que decidimos tentar ver a mãe das coisas. Foi difícil e tivemos de o fazer durante a noite, com medo de a assustar. Mas o nosso passo era certeiro.
Ao fundo de uma clareira
(lá bem no fundo)
estava ela, iluminada por dois grandes holofotes. Caiam-lhe estrelas pelos braços e olhava para a frente, não nos viu. No seu peito efervesciam letras, e percebi que eram as histórias de todos nós, que lhe passavam lentamente por cima.

Ser-se mãe é uma carga da trabalhos – lembrei-me de pensar na altura. E é por isso que nos ignora. Uma mulher, se for mesmo mulher
(o que é isso?)
vai estar demasiado ocupada para dar atenção aos problemas insignificantes dos outros. Parecia ser essa a lição que nos queria dar.
E a verdade é que guardei essa mensagem durante todo mim, para sempre. Hoje sou bem adulto e ainda vivo segundo esse lema.
Hoje sou bem adulto e tenho milhões de lemas.
É por esta altura que começas a achar que já há demasiadas personagens na minha história? Pois é, recapitulando: existo eu, tu, ela e a mãe das coisas.

E perguntas-te agora como sei disto
é porque a trago sempre encravada num abraço
aliás, somos todos um pouco
desta luz que lhe jorra das mãos. 


Texto : Teresa Lopes Vieira
Fotografia : Estelle Valente

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Lara Franco


Lara Franco






Perversidade sonora

A incerteza que te dou é exacta. Tem dentro dos dedos a felicidade de deslizar sobre a tua superfície monstruosamente densa e imensurável. Tem na ponta da língua o desejo da maravilhosa surpresa destroçada. No desequilíbrio da perversidade dos teus olhos, as sobras de voz que te deixo não passam de gemidos. São sinais da cedência de passagem que o meu corpo rasga contra o grito, pelas noites obscuras e imprevisíveis, no limite do vazio a que me ofereces. Já te contei que a violência que existe, por entre a luz dos candeeiros de rua, quando o teu corpo me encontra, me obriga a dar-te as palavras às quais não sei chegar. Mas de nada serve dizer-te que quero modelar o mundo, encher os espaços de silêncio e suor para descansar depois contigo. Tenho fome, tanta fome de que me mereças, na construção da pele que depois de ti nunca mais será a mesma. Porque o meu corpo só se despe ao som exacto da mão que o torna mais vivo. E por isso hoje vou sacudir-te, mesmo sem saber se é isso que quero. Só porque preciso de te ver de copo sobre a mesa, lá em baixo. Pelo meio da confusão, enquanto tu sabes exactamente onde estás, eu canto para te perder no espaço. Para que morras tu, hoje, por baixo da minha sombra fria. Preciso deste palco.



Texto : Lara Franco
Fotografia : Estelle Valente

Sofia Cunha


Sofia Cunha




INÚTIL

Segura-me inútil, assim tombada de tudo e de nada.
Segura-me, inútil!
Segura-me ainda que de nada te sirva.
Somos iguais, tu e eu, não vês?
Abraça com força o inútil de mim.
Larga o resto que não sobra.
Não há que temer.
Deixa ao medo o nada que resta do que seguras,
é tão pouco o que te confio.
Não pode ser assim tão difícil,
um quase nada de gente,
levezinho.
Não há Cerélac capaz de engordar a gente que não sou.
Nasceu assim o bébé,
enfezado.
Nem com papas lá vai.
É só,
         atirar ao ar e voltar a agarrar
         atirar ao ar e voltar a agarrar
         atirar ao ar e voltar a agarrar....
         Só isso.
Vais ver como ri de felicidade,
ou lá do que riem os seres levezinhos...
É só isso que quer,
que o segures.
Nem que o atires,
que o segures.
Mas se para isso tiver de voar,
não se importa,
fecha os olhos com força e quando voltar a olhar,
já ri,
seguro.
Segura-o inútil, assim tombado no ar,
de cada vez que voa,
de cada vez que ri.
Segura-o inútil, assim tombado de tudo e de nada.
Inútil?
Não... levezinho, apenas.
Lembra-te,
                  atirar ao ar e voltar a agarrar
                  atirar ao ar e voltar a agarrar
                  atirar ao ar e voltar a agarrar....
Repara como ri.
Que importa se de felicidade ou se de outra fantasia qualquer?
Segura-me, inútil!
Ri-te, inútil!
Aproveita se te faço útil.

Texto : Sofia Cunha
Fotografia : Estelle Valente

Paula Cortes


Paula Cortes




ENSAIO SOBRE O OLHAR

I
A LUZ

                - Atenta: a luz é perigosa. 
Até àquela noite, toda a minha existência tinha sido levada como a de uma traça. Bastava despontar um feixe de luz. Qualquer foco era bastante para bater as asas na sua direcção. Quanto mais luz, mais vejo – pensava eu com a certeza idêntica àqueles que na idade média asseveravam a verdade da teoria geocêntrica (e hoje a heliocêntrica e amanhã a teoria que falará a falsa verdade em que os homens tanto gostam de acreditar). Rejubilava com a possibilidade da luz iluminar mais a realidade e esta afigurar-se a meus olhos nua, real e verdadeira. Os máximos de um carro a alta velocidade numa auto-estrada, a sinergia do vento a empurrar-me, o frio a cortar-me as asas, o barulho em progressão de um carro a passar na outra faixa, depois uma mota... as luzes iam e vinham... Mas eu seguia uma, aquela... Vinha na minha direcção, cada vez mais forte, em crescendo. Sabia que era esta a luz, era aqui que estava a verdade, cada vez mais próxima. O brilho a ofuscar-me! A adrenalina de ser eu a conseguir tocar-lhe, eu e não outra traça. Sim, haviam mais traças atrás de mim projectadas pela vontade de querer ver mais, mas eu ia chegar primeiro... Era agora, o carro aproximava-se. A luz, a luz, a luz... Eis a LUZ.  
        - Não desconfiava que luz a mais pudesse levar à cegueira. – Proferi eu, numa manhã escurecida sobre uma pálpebra aberta à infinita impossibilidade de ver. O alcatrão fervia sobre os cortes do meu corpo mole, desfeito e, enfim, esmagado pela roda do carro que passou.  

II. AS SOMBRAS

          Tal como uma traça segue a luz, eu sigo as sombras. Estas atestam a existência dos corpos. Sigo-as porque não mais creio na luz, que mata, mas também morre.
       A minha realidade raramente contém pontos de luz fortes, encontra-se antes temperada pelo negrume. Não sei se pelo acidente que aconteceu, se por os meus olhos insistirem buscar, quase compulsivamente, ver o que acreditam ser. E é certo que desacreditei na luz para crer em sombras. A claridade desviou-se do meu olhar e despontou ela mesma sobre o horizonte de outros mundos que não o meu – noutra realidade destinada a que outros supusessem que a luz iluminasse. Mas nem mesmo as sombras atestam a realidade.
       A realidade existe porque a sombra dilacera o enorme pano em que a luz cria formas e contornos, limites de existir – silhuetas. As silhuetas escondem a inexistência. São espaços com forma entre a luz, o vazio.
       Crer no vazio? Ou hei-de supor que a luz, por não ser vazio, me diz mais?
       O homem não gosta da vacuidade, do mistério ou da simples imprevisibilidade dos buracos, porque o incomodam. Por suposta segurança, mais lhe vale uma qualquer luz que se julgue fazer iluminar, pois responde à dúvida, ao medo de não ver, à angústia de pensar sobre o abstracto.  

III
A LUZ E A SOMBRA

        Suponho que a realidade, vista pelo corpo com que sou-no-mundo, não seja senão uma dialéctica entre luz e sombra.
      Nós acreditamos no que vemos. Segui a luz, como aquele homem supõe que a matemática explica por via de complexos malabarismos de números o mundo. Mas a luz não ilumina toda a realidade e é preciso não reificar e absolutizar a existência ao que é iluminado. Segui depois as sombras, porque talvez fossem a prova de que um corpo existe. Mas nem isto é certo, pois nem sempre existem sombras. Primeiro, é preciso haver escuridão. Depois, é preciso luz que a dissipe. Ora, que será da noite sem luz? Vazio. Nem sequer uma silhueta.
       Na realidade, entre a luz e a sombra, entre o vazio, entre a ideia de pensar-me existir, há uma silhueta em forma de cruz que me diz todos os dias que a minha existência é finita e fala-me em surdina ao ouvido acerca do absurdo que é viver para morrer. Esta forma vazia dá conta da urgência de haver tantos sentidos humanos, tantos jogos paralelos entre luzes e sombras, conferindo assim uma forma ao universo capaz de o explicar em si-mesmo.
       A luz, tal como a sombra, existirão sem saber o que iluminam ou que apagam. O homem, ávido por explicações, continuará a partir da realidade que vê como se esta se tratasse da realidade que uma traça vê ao seguir a luz. Ambos existem. Ambos morrerão. Talvez uma qualquer realidade continue subsistindo aquém e além, antes e depois de qualquer buraco negro traçado pela persistente intermitência da luz que nos cega de tanta e tão tonta racionalidade, ébria e sempre incompleta, como a sobra da cruz. 


Texto : Paula Cortes
Fotografia : Estelle Valente

Luís Osório


Luís Osório



ÉS UM VESTIDO

Quase parece um vestido.
Se o fosse, imaginá-lo-ia num cabide branco, em espera.
Inventaria então o mais brutal dos desejos: o de um corpo o poder habitar sem asfixiar de realidade.

No fundo dos fundos há uma porta invisível. Saberei reconhecê-la porque nenhuma outra é igual. Não a vejo, imagino-a como uma palavra de um alfabeto privado.

A porta invisível que mais parece um vestido creme, em espera.

Sigo em frente. Ficarei cego para o conseguir ver. Um preço leve, quase nada. Um vestido que é uma porta de utopia, um desejo de liberdade que não é a liberdade, é outra coisa. Deixar de ver para ver. Um leve preço, quase nada.

Não sinto o que toco. Mas toco.
Parece ser a que sonhei.
Como se fosse possível o impossível. Como se no fundo dos fundos de mim, ela existisse.

Ela.
Uma porta.
Que é um vestido.
Que é um cabide dentro de uma palavra por existir.
Uma liberdade que não é liberdade, é mais.
Que é tudo. Um amor sem tédio ou passado. Apenas isso e tudo isso.

Quase parece um vestido dentro de uma porta.
Um vestido que me espera com uma palavra nova, nunca ouvida.
Uma palavra que será nossa.

Para sempre.

Mesmo que o sempre seja um breve hoje, seguirei.

Para dentro do vestido que imagino.
Para dentro dela.
No interior da utopia.
Agora que não vejo, vejo-a.
Entro.
Fico em espera.

À espera que perca a visão para me ver.
Seremos então o vestido. E descansaremos.

Texto : Luís Osório
Fotografia : Estelle Valente 

Luis Serra Santos


Luis Serra Santos



                                                        VERDE ESBATIDO EM MIM, DE TI


                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde

                                                        Esse Verde que me persegue
                                                        Esse Esverdeado turvo
                                                        No Verdete que me desfaz
                                                        Na esperança que te faz
                                                        A única, em tom Verde
                                                        Turva, desvanecida
                                                        Esbatida, anestesiada
                                                        Em que te despes
                                                        E me aqueces
                                                        E arrefeces
                                                        Quando enfim espero
                                                        E despertas
                                                        Não o meu eu
                                                        Não o meu eu, em mim
                                                        Mas o meu eu, em ti
                                                        Sob uma chuva distante
                                                        Numa névoa esquecida
                                                        Num vale obscuro
                                                        Perto de ti
                                                        Em tons Verdes
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde
                                                        A mesma cor
                                                        De uma noite escura
                                                        Esverdeada, rara
                                                        Em que te conheci
                                                        E por ti roguei
                                                        A Deuses que nem Amo
                                                        Nem conheço, nem quero
                                                        Só por ti
                                                        E por ti pedi
                                                        Que fosses minha
                                                        A todos eles
                                                        Pelo menos, mais uma noite
                                                        Apenas uma
                                                        Uma noite Verde
                                                        Desfocada, que seja
                                                        Enevoada
                                                        Mas ainda assim, nossa
                                                        A nossa noite primaveril
                                                        Em terra, no céu, no mar
                                                        Mas para sempre, Verde
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde
                                                        A nossa cor
                                                        A tua única
                                                        A minha cor
                                                        A única cor
                                                        A única, em que eu
                                                        Sou apenas eu
                                                        Porque contigo
                                                        Ainda que num sonho
                                                        Um sonho Verde
                                                        É a única em que vivo
                                                        Respiro e sinto
                                                        E morro, contigo
                                                        Contigo ao meu lado
                                                        No fundo do mar
                                                        Procurando por ti
                                                        Sem respirar, enfim
                                                        Verde
                                                        Carregando esse tom
                                                        Essa cor
                                                        Para sempre
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde



Texto : Luis Serra Santos
Fotografia : Estelle Valente

Marta Navarro


Marta Navarro







ANTES DE SAIR DE CASA DEIXO SEMPRE A ALIANÇA NA PRIMEIRA GAVETA DA CÓMODA




Nadja sou eu



aqui do ponto em que me encontro
já ensaiei várias definições para divino
«depois queimo tudo e prossigo a minha busca»
mais tarde usarei aquela que diz que o divino é uma reta sem som
                                                                            um ponto negro sem fim que une todos 
os universos alternativos e paralelos a todas as memórias bem e mal-arrumadas
usá-la-ei como sinónimo de Aleph e antónimo de corpo humano
                                                                           de mente humana

Nadja é o ponto potencial
o vitral que separa o dentro e o fora
em losangos de muitas cores
é todas as cores potenciadas pelas luzes que vêm de dentro
                                              pelas luzes que vêm de fora

Nadja podia ser aquele Raul que emigrou por amor
e cuja história ainda está por escrever
mas o amor não lhe é um movimento de saída
nem deslocação
é-lhe o destino de um par de versos que repete até ao cansaço

meu amor,    
não esperes por mim,
                    que eu posso/devo demorar
encontro-te depois,
                   quando quiser/precisar de descansar             

Em casa também ensaio a ideia da minha morte
visto-me de luto, sento-me no sofá que dá para a porta da rua e pergunto:
o que terá Nadja de ter deixado feito?
mas distraio-me com a campainha do elétrico e saio de casa apressada e sem ter 
respondido ao fim da pergunta
do ponto em que me encontro
               em cima das linhas dos carris
grito para dentro: 
que se foda saber de Nadja até ao fim
eu vou saber de Nadja pelo boca-a-boca
                                     pelo mão-na-mão
                                     pelo corpo-a-corpo
                                     pelo tête-à-tête
                                     pelo mano-a-mano






Texto : Marta Navarro
Fotografia : Estelle Valente

Paola D'Agostino


Paola D'Agostino



Amnistia política

O coração está cheio de becos
Alguns deles desembocam na noite
Outros no teu sorriso
Desconhecido

Devora-me é
Toda uma questão de matérias vulcânicas
E pedras da calçada
Ilhas em viagem
Projeções adiadas

Vem mudar-te para a minha insónia
Tenho ainda imensas coisas para te olhar
Vem
Prometo-te uma casa grande
E muitos cinzeiros

A lei do espanto que nos perdoe
Enquanto
Na geografia de um segundo
Desloca a tectónica do mundo





Texto : Paola D'Agostino
Fotografia : Estelle Valente

José Anjos


José Anjos




REVELAÇÃO

(do latim revelatio, -onis)
s. f.
1. Acto ou efeito de revelar ou de revelar-se.
2. Coisa que é revelada.
6. Inspiração; conhecimento súbito.
7.  Acção de revelar uma película sensível, um negativo ou uma cópia fotográfica.
8. Negativo ou cópia fotográfica revelada.




I
Branco


- Jorge, pára com isso! Já te disse que é impossível arranjá-la! Foi desta que pifou de vez!
- Ó Maria, espera um bocado que já vais ver que eu consigo........ - e mergulhou novamente a cabeça por entre os fios que saíam das entranhas já gastas do aparelho.
- És mesmo teimoso, homem. Ainda vais apanhar um choque daqueles....tira daí as mãos! Não vês que ela morreu? Nada dura para sempre! Nem os animais, nem as pessoas...nem mesmo a D. Justina do Sossego aqui do andar de cima, apesar dos anos agarrada à cama e daqueles gritos nocturnos...... - levou as mãos à cabeça em sinal de desespero - e muito menos essa televisão velha e baratucha, que já deu o que tinha a dar. As coisas também chegam ao fim da sua vida!
- Ah! Eis um milagre então! - respondeu ele com um sorriso triunfante. E afastou-se do ecrã do televisor que, com esforço evidente, se acendia novamente. Aos poucos a imagem do rosto narigudo do Júlio Isidro recuperava da escuridão absoluta para um cinzento viçoso. Ouviu-se um chiado desafinado e depois o som granuloso da banda que acompanhava o programa.
Maria não conseguiu disfarçar um esgar de desapontamento - "Confesso que estava na esperança que esse monstrengo já não tivesse arranjo. Assim teríamos que comprar uma daquelas mais modernas, com cores e telecomando! Estou cansada de ver tudo a preto e branco.....especialmente a novela, às vezes nem consigo distinguir bem as personagens! E tu sabes como eu gosto da novela!"
- "Pois... mas esta está arranjada! E é para durar. Sabes que não temos dinheiro para gastar nessas coisas. O mês passado recebi ainda menos encomendas do que esperava. Parece que as pessoas andam tão ocupadas que já nem têm tempo para se sentarem como antigamente. Isto não está fácil, Mariazinha..."
Maria sabia que ele tinha razão e que não valia pena insistir. Encolheu os ombros e voltou para a cozinha, resignada. Guardou em segredo o desejo de ver o aparelho finar-se de vez, com sorte num dos próximos dias.
Corria o Natal de 1975. Viviam-se tempos difíceis mas calorosos na casa de Maria e Jorge Vicente. Não tinham filhos, mas o tempo, a idade e a dificuldade tinham, entre tanto e tão pouco, arrasado essa possibilidade. Tornou-se num sonho desfeito em angústia sempre presente, apenas esmagada ao longo dos anos pelas rotinas e cumplicidades que partilhavam diariamente. 
Mas no Natal tornava-se mais complicado preencher o vazio que os unia num desgosto surdo. Eram só os dois. E a televisão que lhes enchia o serão. Mais ninguém. Assim, cada um fazia tudo o que podia para distrair e mimar o outro com os presentes e surpresas possíveis. E apesar da tristeza de não terem filhos foram aprendendo a ser felizes na companhia um do outro, com a ternura e carinho que sentiam um pelo outro. No amor que viviam um com outro. 
No Natal, o apartamento exíguo mas confortável em que viviam no bairro de Campo de Ourique enchia-se de luz e velas, enfeites e soberbos manjares confeccionados com o talento e dedicação que Maria Vicente tinha tanto orgulho em exibir. Era óptima cozinheira e uma dona-de-casa com super-poderes. Fazia questão de ter sempre tudo impecável e de dar a todas as divisões o seu toque pessoal: uma flor, uma fotografia, os tecidos e a mobília que escolhia, a iluminação, de noite e de dia, tudo era estudado e disposto para tornar o ambiente do lar o mais confortável e quente possível. Como Jorge lhe costumava dizer, ela era «a mulher mais especial que um homem podia desejar». Ela sabia bem disso e gostava de o agradar sempre que podia e fazia-o, aliás, de forma indisfarçável. 
Jorge era estofador de profissão, mister a que se dedicava desde os seus doze anos, idade com que tinha começado a trabalhar como ajudante na loja do seu tio Alfredo. Com o passar dos anos foi ganhando perícia no que fazia e cada vez eram mais os clientes que o recomendavam e lhe encomendavam trabalhos. Até que o seu tio Alfredo, assombrado como um abutre faminto pelas sequelas de febre reumática que tinha tido em pequeno, acabou por sucumbir ao desgaste do coração e morreu de insuficiência cardíaca em 1971. 
Jorge ficou à frente da loja e desde então que trabalhava sozinho de sol a sol para dar vazão a todas as encomendas. Quando o negócio afrouxava, aproveitava o seu jeito natural para fazer uns biscates como electricista ou canalizador. Era um homem duro e resiliente. Maria dava-lhe algum apoio na organização da escrita comercial - Jorge era um desastre nessas lides - mas raramente se deslocava à loja. 
O dinheiro que entrava dava para pagar as despesas e viver com alguma segurança, desde que fossem regrados e se mantivessem preocupados em amealhar algumas poupanças. Eram felizes na sua modéstia. E o Natal era a única época do ano em que se permitiam sair da severa rotina e cometer algumas "excentricidades": um cabrito para o jantar, uma boa garrafa de vinho tinto e as mínimas mordomias e iguarias com que todos, pobres ou ricos, cada um à sua maneira, se prazenteavam na noite de consoada.
Nesse ano, na noite de véspera de Natal, Maria esperava com ânsia que o marido chegasse do trabalho. Já passava das sete da tarde e não era costume atrasar-se em noites especiais como aquela. «Deve ter ficado a terminar alguma encomenda especial de Natal», pensou, para afastar maus pressentimentos, «ou está a preparar uma das suas surpresas». Sorriu para dentro e conteve a ansiedade, tratando de conferir que tudo estava como ela queria. 
Sabia que Jorge ia ficar contente com o cuidado com que ela tinha preparado a casa naquela noite. A mesa estava posta em convite que abria o apetite e, no centro, um arranjo de flores e enfeites que ela própria tinha feito. Todas as divisões estavam aquecidas pelo ar quente que saía dos caloríferos num ronronar lânguido e constante. O jantar estava no forno e um delicioso aroma a assado e doces caseiros enchia a casa de promessas e conforto. A promessa do conforto de estarem juntos.
Jorge era um homem de poucas falas, conservador fervoroso, mas muito justo e generoso. E não se continha na hora de tecer elogios e demonstrar o seu agrado pela forma como Maria cuidava dele e do lar. Costumava dizer, em tom de brincadeira mordaz «nunca hei-de ficar a saber quando estiver morto, de tal forma vais arranjar a última morada para me receber, hei-de julgar que continuo a viver, contigo e aqui em casa!»
Maria era uma mulher feliz, com uma vida simples. Sabia que havia um mundo lá fora que ela mal conhecia mas jamais seria capaz de abandonar a casa, o lar, o mundo que tinham construído os dois. E era esse mundo que celebravam naquela noite. O seu mundo. Sentia-se preenchida e naquele momento já não conseguia fazer mais nada senão aguentar o frio nervoso e doce que dançava na sua barriga e esperar a chegada do marido.
A árvore de Natal erguia-se a um canto, envolvida em luzes que piscavam tranquilamente. Era um pinheiro manso que eles próprios tinham ido buscar à mata junto à Lagoa de Albufeira. Agora estava ali, decorado e imponente, a guardar os embrulhos e postais de boas-festas enviados por clientes e amigos do casal. Esperavam sempre pela meia-noite para trocarem os presentes. E a cada ano que passava, esmeravam-se  sempre um pouco mais na surpresa que preparavam um para o outro. Por isso, escondiam as suas prendas até ao momento da troca, com um nervoso miúdo antes de abrirem o seu presente. Faziam este jogo há mais de dez anos, como se fossem crianças. Amavam-se verdadeiramente.
Mas as horas iam avançando e Maria começou a sentir um misto de preocupação e zanga pelo atraso não avisado do marido. Estranhou este comportamento, dado que ele nunca chegava depois das sete da tarde, e já passava das oito e meia. 
Lembrou-se de ligar para a loja. Se ninguém atendesse era porque ele já viria a caminho. Sem aguentar mais, levantou-se num assomo. Dirigiu-se ao telefone, mas este rompeu num toque estridente antes de ela lhe pegar. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha. Levantou o auscultador e reparou que a sua mão tremia. Engoliu em seco.
- Está sim?

II
Preto


Passaram mais de duas semanas até que conseguisse regressar ao apartamento de Campo de Ourique depois da tragédia que se havia abatido sobre ela naquela véspera de Natal. 
Já nem se lembrava da voz condoída a dizer-lhe ao telefone que algo de terrível tinha acontecido ao seu marido. Recordava-se apenas da sensação de peso, como se o ar e o corpo, tudo à sua volta, se transformasse em chumbo e a puxasse para um abismo sem fundo. O choque foi imediato. Jorge estava morto. O resto não interessava. Foi como se a mente se desligasse do mundo exterior e suprimisse todas as reacções e emoções para além de uma e uma só: sobreviver. 
Assim, depois de desligar o telefone, Maria preparou uma pequena mala com o mínimo essencial e saiu para casa de uma amiga. Os dias seguintes foram passados em modo automático a tratar das burocracias e liturgias inerentes à morte de Jorge: velório, funeral, cartas às finanças, habilitações de herdeiros (era apenas ela), missa de sétimo dia, ouvir as infinitamente ensaiadas condolências de amigos, clientes, vizinhos, familiares distantes, tratar do encerramento e venda da loja, etc....não parou enquanto não se libertou de tudo o que lhe lembrava constantemente da morte de Jorge e dos espaços, agora vazios e desolados, que o marido já não ocupava. 
Todos os que a rodearam, por apoio ou sincera preocupação, estranharam a frieza e dureza que aquela pequena mulher conseguia assumir perante tão cruel desgraça. 
Negou-se a ir a casa enquanto não estivesse tudo resolvido. Aí trataria então de enfrentar os vazios com que teria de viver o resto dos dias da sua vida: o que existia dentro dela e o da casa onde viveram e foram felizes à sua própria maneira. A casa e o corpo, o coração, onde continuariam a existir, não fosse a injustiça que lhe tinha levado o marido antes do tempo. 
Até que o turbilhão acalmou um pouco, fazendo com que a poeira das coisas assentasse no chão como a terra sobre o caixão que o enterrou. O facto era agora o tão claro quanto a escuridão que trazia: Jorge estava - e ia ficar para sempre - morto. Tinha desaparecido. Chegara o momento de voltar a casa.
Meteu a chave à porta e entrou. As luzes estavam ligadas e a mesa posta, tudo tal como tinha deixado na véspera de Natal. Sentiu um ímpeto violento de se sentar e desabar a chorar, mas conseguiu conter o primeiro espasmo, um soluço agudo e abafado que ainda subiu sozinho pelo fundo da garganta dorida. 
Arregaçou as mangas do casa preto que vestia e desfez a mesa, a árvore e enfeites de Natal com uma força e energia que não conhecia em si própria. 
Em duas horas deixou tudo arrumado e limpo. Resolveu continuar e decidiu entrar no quarto. Inspirou fundo e, retomando o ímpeto, transpôs a porta e dirigiu-se à cama. Mudou os lençóis e cobertores, separou a roupa para lavar e, sem parar por um segundo que fosse, abriu o armário onde o marido guardava as sua roupa e os sapatos. O cheiro tão familiar e característico do marido causou-lhe uma dor excruciante. Ao mesmo tempo, parecia que ele ainda estava ali, guardado, escondido dentro de algum daqueles fatos. Ignorou os sentimentos e trancou o coração à chave enquanto retirava todas as peças de roupa do marido e as colocava num saco destinado à Igreja. Era o que ele quereria. 
Depois de ter esvaziado o armário, reparou num embrulho volumoso toscamente escondido atrás da sapateira. Estava envolvido em papel pardo com um laço vermelho, muito simples, preso ao invólucro juntamente com um pequeno cartão de boas-festas. Maria soltou o cartão e leu o que estava escrito no interior: "Para ti Maria, roubei o arco-íris e guardei-o nesta caixa. Com amor, do teu Jorge. Natal de 75"
Sentiu um mar de lágrimas a turvar-lhe o olhar. Não precisava de espreitar para o interior do embrulho para saber de que caixa se tratava: era o televisor a cores que ela tanto queria. Jorge tinha conseguido convencê-la de que não a poderiam comprar, só para lhe fazer a surpresa pelo Natal! Até se tinha dado ao trabalho de arranjar a chaimite monocromática que tinham na sala. Riu-se pela primeira vez desde há quase um mês ao lembrar-se da cabeça dele enfiada pelos fios despenteados dos circuitos do aparelho, enquanto dizia «nem pensar, Maria, esta televisão está aqui para durar!». 
Riu-se, sentou-se, agarrou-se ao postal que segurava ferreamente entre os dedos e encostou-se à caixa do aparelho, deixando-se escorregar pela porta do armário até ficar sentada no tapete. O riso depressa se tornou numa angústia doce que lhe inundou os olhos de lágrimas salgadas que começaram a escorrer copiosamente pela sua face. E chorou. Soltou o corpo e a alma num pranto desalmado de dor e amor, desesperado. Chorou em espasmos repetidos, como se quisessem sair do seu corpo, e gritou amargamente por entre os soluços e fungos encharcados pelas lágrimas gordas que a consolavam. Foi chorando cada vez mais baixinho, até que, por fim, adormeceu profundamente ali mesmo. 
Acordou na manhã seguinte, com o corpo dorido do chão duro e a cara inchada pelo pranto. Mas sentiu que tinha dormido numa paz intensa, como se envolvida pela memória do marido que, apesar de dolorosa, era o que de mais valioso existia dentro de si. Imbuída de um novo alento, levantou-se com firmeza e foi arranjar-se para a casa de banho. E havia muito para fazer. Não se ia deitar no chão até morrer. Estava de regresso a casa.
Os dias foram passando, sempre atravessados pelo vazio que Jorge tinha deixado. Em todos os pormenores, em todos os recantos e momentos da vida de Maria. Mas isso confortava-a, aquela presença constante e a lembrança de que a vida de ambos tinha feito sentido. E, apesar da ausência dele, a dor dela também fazia sentido. Não a queria perder. Mas não ia deixar de viver.
Começou por tirar o televisor da caixa e colocá-lo na sala. A presença daquele aparelho tinha um significado ambivalente e contraditório para ela: por um lado, a doçura do marido, que lhe conhecia e reconhecia tão bem, materializada naquele pequeno gesto, mas, por outro, a crueldade da tragédia que tinha acontecido. Da sua morte. E do que ela lhe tirou, a ela. E aos dois. Era, aliás, a prova mais concreta disso.
Por isso, fez um pacto consigo própria. Deixaria a televisão exposta no seu devido lugar na sala, mas jamais a ligaria. Continuaria votada a ver televisão a preto e branco. E assim fez.



III
Preto e Branco

Durante os anos que passaram nunca acendeu a televisão a cores. Viveu a sua vida a preto e branco. Curiosamente, a velha televisão que Jorge tinha arranjado dias antes de morrer (com o único intuito, por sinal, de lhe fazer a surpresa) não falhou uma única vez durante mais de vinte anos. Isso fazia-a sorrir com frequência, na solidão familiar em que passava os serões. 
Viveu o resto da vida numa doçura triste, mas desafogada. As poupanças que tinham feito e o produto da venda da loja somavam um considerável pecúlio para quem se tinha habituado a viver na severidade da incerteza. Maria pôs o dinheiro no Banco e ia retirando dividendos dos investimentos que alguém fazia por ela. Para além disso, passou a dar uso profissional aos seus talentos de cozinheira e costureira e todas as semanas fazia bolos por encomenda para as pastelarias da zona e alguns arranjos de costura.
Apenas saía de casa para ir ao médico, almoçar ou tomar chá com alguma amiga e para entregar os trabalhos que lhe encomendavam. E assim foi pelo fio dos anos que passaram. O mundo mudou. E Maria continuou a ver televisão a preto e branco. Adaptada, resignada, absorvida pelo mundo que ambos tinham construído até à morte de Jorge. Esse mundo que para ela ainda existia. 
Era nesse mundo que vivia. E viveu, imutavelmente, durante trinta anos. Até que um dia recebeu um telefonema da Câmara Municipal a informar que o prédio onde vivia, entretanto degradado e quase totalmente desabitado, já não apresentava a integridade estrutural suficiente para garantir a segurança dela e de terceiros, pelo que teria de sair. Para além disso, havia sido aprovado um Plano Pormenor em Assembleia Municipal e o prédio ia ser substituído por outro, de luxo, com o dobro dos fogos. Garantiam-lhe novo alojamento, naturalmente. 
Maria reagiu com uma imensa e furiosa apatia. Estava doente e cansada. Não queria sair daquela casa, mesmo que apenas temporariamente, mas sabia que isso seria inevitável. As visitas ao médico eram cada vez mais custosas e o seu estado de saúde inspirava cuidados mais continuados. Como não tinha ninguém, para além de uma ou outra amiga a quem nunca daria esse encargo, planeou a sua mudança definitiva para um lar. Pelo menos poderia escolher um que gostasse enquanto ainda estava lúcida e ter alguma qualidade de vida nos poucos anos que lhe restavam. 
Tratou de todas as formalidades no prazo de uma semana. Quanto mais depressa mudasse, mais depressa se habituaria ao seu novo fim de vida. 
Escolheu um lar ali mesmo no bairro e tratou da doação do recheio da casa a instituições de caridade. Guardou apenas alguns objectos para si, como lembrança de uma vida que parecia cada vez mais distante e ausente da sua memória já gasta. Hesitou em relação um item em especial: o que fazer com a televisão a cores, sentada há anos na mesa da sala, ainda por estrear? Custava-lhe desfazer-se dela, mas as regras do lar eram claras: não era permitido levar mobília ou electrodomésticos pessoais, dado que o lar se encontrava munidos de todas essas parafernálias. 
Ligou a uma amiga a oferecer a guarda do aparelho (tratava-se mais de um pedido do que uma oferta), oferta esta recusada por motivos de "vetustez" e inutilidade de uma televisão com mais de trinta anos, completamente desactualizada. Resolveu não pensar mais no assunto. 
O dia da mudança chegou e a carrinha do lar apareceu muito cedo pela manhã. Maria tinha todos os seus pertences impecavelmente arrumados e acondicionados em sacos para facilitar o transporte. A casa estava dolorosamente despida. Os móveis já tinham sido levados pelas instituições de caridade. Todas as divisões estavam vazias. Com excepção da sala, em cujo soalho nu assentava a televisão a cores que ela nunca tinha ligado. Parecia amuada e triste, ali, sozinha, resiliente,  muito bem limpa e luzidia, a pedir para ser levada pela dona. 
Maria avaliou os rapazes que estavam a carregar os sacos pelas escadas e aproveitando um momento em que estavam sós, dirigiu-se àquele que lhe parecia ser o mais bondoso. Era um rapaz novo, de cabelo muito escuro e uns olhos tristes, mas simpáticos. Pediu-lhe (com promessa de uma generosa gratificação) que levasse o televisor para a carrinha embrulhada num cobertor e que depois a escondesse num dos arrumos do lar, sem que ninguém o visse. Ela depois trataria de conquistar as amizades suficientes para lograr conseguir ter o aparelho no seu quarto. 
O rapaz aceitou. Embora estranhando a fixação da senhora por uma televisão velha, percebeu perfeitamente, sem saber explicar porquê, a dimensão do sentimento e significado que tinham para ela. Combinaram que ele levaria a televisão para o patamar intermédio do lanço de escadas que desembocava directamente para a porta do prédio, sob pretexto de, como disse aos colegas, "vêm cá uns tipos da câmara buscar o aparelho e é proibido deixá-lo na rua".
Maria sentiu uma  felicidade que  lhe deu todo um novo alento para aquela transição. Desceu as escadas e refugiou-se no interior quente da carrinha, serena e confiante na bondade e empenho do rapaz em cumprir a missão pedida. Tinha escolhido bem. E, para além disso, ia pagar-lhe uma quantia bastante generosa.
Chovia violentamente - o tempo mantinha assim, aliás, há mais de uma semana - e as rajadas de vento varriam as ruas furiosamente, fazendo bater portas, cair árvores e, por vezes, até pessoas. O chão molhado não ajudava ao equilíbrio.
Maria estava sentada com as costas para a entrada do prédio e nem se apercebeu bem do que aconteceu. Um estrondo parecido com um trovão fez-se ouvir (embora não trovejasse naquele momento), seguido de um chiar cavernoso e arrepiante. Os homens começaram a gritar para dentro do prédio e Maria voltou-se para trás a tempo de ver o rapaz bondoso a fugir de lá de dentro como se tivesse visto um fantasma. Saiu a correr e, entre passos e derrapagens, veio estatelar-se junto à parte de trás da carrinha, batendo com a cabeça na porta. Assustados, os homens acercaram-se dele para ver se estava bem. Maria sentiu um apertão no peito. Com um sentimento de culpa que quase lhe cortou a respiração apercebeu-se de duas coisas: primeiro, o rapaz só voltou para dentro do prédio para cumprir o pedido que ela lhe havia feito. Podia ter morrido, dado que parte do prédio colapsou nesse preciso momento. Segundo, todos os seus pertences estavam já na carrinha e o rapaz tinha saído de mãos vazias. A televisão tinha ficado no patamar. E Maria não sabia que parte e andar do prédio tinha ruído. Sentiu um pânico de desgosto e preocupação, muito superior à vontade de querer saber se o rapaz se tinha aleijado.
Apesar de ter batido com a cabeça no chão, o rapaz estava bem e acabou por recuperar os sentidos e entrar na carrinha pelo seu próprio pé. As dores e os queixumes fizeram-no esquecer do pedido de Maria, que optou por ficar calada, cerrando os dentes num misto de raiva e culpa. Deixou-se ir, contrariada.
Os primeiros meses no lar foram terríveis. Apesar de ter sido bem recebida e ter óptimas condições, Maria não conseguia sacudir da cabeça a sua obsessão pelo aparelho que tinha ficado para trás. Sentia que o tinha abandonado e, assim, que tinha abandonado o que lhe restava de Jorge e do que entretanto se tinha tornado no símbolo da memória e força que a tinham aguentado durante todos aqueles anos depois da sua morte.
Para além disso, começava a custar-lhe cada vez mais lembrar-se do passado, ou melhor, de sentir o passado sem aquele objecto. Para tantos indiferente. Para ela, um sorriso do passado no seu presente de preto e branco. E sem ele, sem a sua casa, sem o conforto do seu mundo e do seu lar, Maria começou a definhar.
Em menos de dois anos, todos os seus problemas de saúde se agravaram exponencialmente. Foi-se isolando cada vez mais, até os seus dias se resumirem ao pequeno quarto, numa agonia de corpo e alma, zangada e esquecida.
Tornou-se cada vez mais amarga. Nada lhe interessava. Quando lhe traziam as refeições e os medicamentos ao quarto limitava-se a cumprir as ordens numa apatia extrema. Por vezes, quando estava mais agitada, gritava e suplicava que a deixassem morrer. «Parem de me dar estas porcarias! Eu quero morrer, não quero continuar mais neste inferno!" E dia após dia, o tempo foi escurecendo para Maria.


IV
Cor

- Lembras-te daquela história que te contei uma vez? - perguntou ele enquanto passavam de carro numa rua de Campo de Ourique.
- Hã? Qual? - ela nem lhe estava a prestar atenção. Tinha o olhar fixo na selva urbana que ia passando pelo vidro do carro como se fosse um filme.
- Daquela, há mais de cinco anos, quando estava a fazer uns biscates durante o curso..... ia ficando quase soterrado dentro de um prédio antigo a tentar salvar a televisão de uma velhota que ia para o lar e não se queria separar dela. Lembras-te? Não consegui trazer a televisão, fiquei cheio de pena da senhora.
- Ah! Já me lembro sim! - virou o rosto para ele com o sorriso iluminado - Sempre adorei essa história. Acho que foste um querido, aliás, como és sempre! Mas porquê, foi aqui?
- Foi sim. Nesse prédio mesmo - e parou o carro.
Apontou para um prédio muito velho que parecia ter sido chicoteado por estilhaços de bomba. Estava rodeado de tapumes. Em tempos deveria ter sido um belo prédio, percebia-se que era de boa construção (caso contrário não teria resistido tantos anos, apesar de ter colapsado parcialmente) e a fachada, apesar de suja e degradada, denunciava a  beleza de outrora, agora escondida.
Ela saiu do carro e deteve-se defronte do prédio. Ficava sempre fascinada com os prédio abandonados, com as vidas desaparecidas que neles aconteceram, um passado de histórias e momentos de amor, raiva, tristeza, alegria... tudo reduzido ao frio empedernido daquele prédio antigo.
- Será que a televisão ainda está no sítio onde a deixaste? - perguntou de repente com um entusiasmo juvenil.
- Não sei..... se não ficou esmagada por algum dos pedaços de tecto que caíram quando fugi, entretanto deve ter sido roubada de certeza, já passaram tantos anos.... Mas não estás a pensar em ir buscá-la, não? Anda, vamos embora antes que tenhas alguma ideia maluca.
- Não, espera. Não a quero ir buscar. Mas vê ali, há um abertura entre os tapumes e a porta de entrada parece não estar trancada. Podíamos ir ver se ela ainda lá está....e tirar uma fotografia! - correu para o carro   e num ápice voltou de máquina em riste - Estou tão curiosa! Vá lá!
Ele deitou-lhe um olhar zangado e reprovador. Era perigoso e disparatado. Mas sabia que o entusiasmo dela era genuíno e dificilmente a conseguiria demover. «Nunca devia ter parado», pensou. Mas era tarde para isso. Gostava dela e sabia que aquela pequena aventura a ia fazer feliz. Engoliu a preocupação e disse, descontraindo o cenho - Está bem, mas despachas-te em dois minutos e eu vou ficar aqui fora a ver se aparece alguém. Se acontecer alguma coisa gritas logo que eu vou a correr. E se eu te chamar, seja por que razão for, tu voltas logo. OK? - Combinado! - disse ela sem disfarçar o entusiasmo na voz - Se ainda estiver lá nem vou acreditar! É uma história a sério! Estou tão curiosa..... - e de repente lembrou-se - Será que a senhora ainda é viva? Vamos ter de descobrir, podes sempre ligar para o lar onde trabalhaste durante o curso...
Ele sorriu carinhosamente, sem conseguir disfarçar nele próprio alguma da curiosidade e entusiasmo que ela sentia. Não conseguiu deixar de se perguntar se a senhora ainda estaria viva. Já tinham passado tantos anos.
Só teve tempo de gritar enquanto ela se esgueirava já por entre o rasgão que separava dois tapumes - Não passes da entrada, ouviste! O prédio está instável. Tens de ficar à porta!. Um «ok» abafado e seco foi a última coisa que ouviu antes de a ver desaparecer.
Os cinco minutos prometidos pareceram-lhe duas horas devido à ansiedade dolorosa causa pela preocupação. No fim, preparava-se já para ir buscá-la lá dentro quando a viu aparecer pela estreita abertura com um sorriso iluminado e o aspecto de quem tinha acabado de ver não um fantasma, mas um anjo. 
Trazia a máquina em riste, que abanou triunfante enquanto gritava: "estava lá! tal como descreveste! Só tive tempo de tirar uma fotografia, aquilo lá dentro é arrepiante." Mostrou-lhe o resultado no ecrã lcd da sua máquina. Sentiu uma enorme angústia dentro de si, sem saber porquê. 
Observou atentamente a fotografia, que mostrava o televisor no mesmo exacto sítio onde o tinha deixado, abandonado, anos antes. Tinha ficado ali, à vista escondida da porta da rua, escancarada, como se esperasse ainda que o levassem para junto de Maria. Mas ninguém o tinha vindo buscar. Ficou esquecido, a documentar um passado apagado e a espelhar no presente o prédio cansado, as paredes descascadas em camadas de tinta e cal, que, tal como os veios de uma árvore ou os sedimentos acumulados sob o chão que pisamos, denunciavam a história e os anos de um mundo acabado. A tinta estalada na parede - que Maria se lembrava bem de ter visto pintar - caía em lascas pelo soalho, como se chorassem pelo seu abandono num processo de auto-demolição. Como se o prédio, agora frio e vazio, soubesse que já não tinha propósito ou razão. Aguardava apenas, decadente, a sua inevitável destruição. 
E Maria, quando viu a fotografia que um dia o casal lhe mostrou, comovido, também ela chorou, lembrou, a vida  e o amor que a morte e o tempo fez ruir. E por entre os escombros e o pó, protegido pelas paredes de carne viva, apodrecida e rasgada pelas fissuras que o tempo fez golpear, jazia aquele aparelho imponente, ainda polido e brilhante, como novo, por estrear. A guardar e a ser, o presente, que Jorge nunca lhe chegou a dar. Que ela abandonou e perdeu, mesmo ali naquele primeiro patamar, mas que agora tinha vindo ter com ela, num gesto de ironia doce do destino, através daquela fotografia. O primeiro e único registo a cor de um televisor que nunca a viu, nunca foi nem se acendeu e apenas serviu, calado, para reflectir no seu ecrã apagado uma vida de solidão. A preto e branco.
Nessa noite, Maria deitou-se com a fotografia entre a palma e o coração. No escuro absoluto do quarto e dos seus olhos cerrados, lembrou-se da primeira vez que tinha visto Jorge, do seu casamento, do seu afago quente em dias de frio, da primeira vez que fizeram amor, dos passeios a Sintra sob o sol misterioso do Inverno. Dos anos passados sem dor. Dos serões passados no seu mundo, no seu lar. Nunca tinha deixado de o amar. Sentiu uma paz imensa. Sentiu o abraço de Jorge ali, deitado a seu lado, como costumava fazer, a envolvê-la até o dia nascer. Dormiu, recordou, sonhou, chorou, sorriu. 
E já não acordou.
Fim






Texto : José Anjos
Fotografia : Estelle Valente

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